TIMOR-LESTE – ENTRE A ESCURIDÃO E O AMANHECER
TIMOR-LESTE – ENTRE A ESCURIDÃO E O AMANHECER
“Recorda a tua fé guerreira, a lealdade, e a ternura do teu lar sem limites, nos caminhos do inesperado ou no improviso da partilha definitiva. Lembra pela última vez que a história da tua ancestralidade, é a história da tua Terra Mãe.” (Crisódio T. Araújo, poeta timorense)
Entre a escuridão, o amanhecer, e a uma nova escuridão, sombras e glórias permeiam o coração da nação dos crocodilos: Timor-Leste. Ao relatar a história de um país marcado por invasões e usurpações de sua soberania, faz-se necessário destacar que a República Democrática do Timor-Leste, como um dos países mais jovens do mundo, está localizada na parte oriental da ilha de Timor, tendo sua capital, Díli, localizada na costa norte.
Martins (2010) relata que o território do Timor-Leste faz fronteira a oeste com a província indonésia de Nusa Tenggara Timur, conhecida também como Timor Ocidental. Ao norte é banhado pelo Mar de Savu e pelo estreito de Wetar, enquanto que ao sul o Mar de Timor faz a ligação com a Austrália. Na parte ocidental da ilha en-contra-se o enclave de Oecusse, dentro do território indonésio, que a exemplo das ilhas de Ataúro e de Jaco fazem parte do território timorense. A história de Timor-Leste é marcada por três grandes períodos de colonização, que marcaram seu povo em gerações distintas. O primeiro período que perdurou por quatrocentos e sessenta e três anos foi de domínio de Portugal.
Martins (2010) informa que o período seguinte teve início a partir da invasão indonésia na década de 1970, quando Timor-Leste foi ocupado pela Indonésia e anexado como sua 27ª província, recebendo o nome de Timor Timur, caracterizando o segundo domínio, o indonésio. Em 30 de Agosto de 1999 o resultado do referendo organizado pela Organização das Nações Unidas, apontou que cerca de 80% do povo timorense optou pela independência. Nesse momento nascia uma nova era, a da liberdade.
Os períodos que retratam a luta pela liberdade e soberania da nação timorense passam a ser retratados neste capítulo, visando situar historicamente o país e entender os entraves que impedem ou explicam o desenvolvimento da educação em Timor-Leste na atualidade, bem como colocam em risco a sobrevivência da língua portuguesa no país.
Domínio português
Portugal, historicamente, é um país que através da época das grandes navegações, conquistou muitas partes do mundo, e na Ásia esta conquista atende pelo nome de Timor-Leste, entre outras colônias na região. O domínio de Portugal sobre Timor-Leste compreende os anos de 1512 a 1975.
Bolina (2005) relata que Timor-Leste esteve desde o século XVI em regime colonial sob a soberania dos portugueses, havendo um curto espaço de tempo nesse período de ocupação por outro país, no caso o Japão, durante a II Guerra Mundial, entre os anos de 1942 e 1945. No quesito educação, o período de dominação portuguesa em Timor-Leste pode ser retratado como uma extensão do modelo educacional português.
Como Forganes (2001) relata, o ensino nessa época seguia o que poderia se chamar de “modelo salazarista”, ou seja, era totalmente lusocêntrico, os timorenses eram obrigados a aprender sobre a história e a cultura do dominador, Portugal, e praticamente nada sobre a colônia, Timor-Leste. Esse “modelo salazarista” levou uma parte da elite timorense educada nessas escolas a menosprezar os dialetos locais, como té-tum, uma das línguas-mãe.
Na atualidade, ao conversar com timorenses com mais de 40 anos é comum relatos como os que certa vez ouvi enquanto participava de uma festa de desluto1 no bairro Bidau Lecidere, que no “tempo dos portugueses” estes eram obrigados a estudar tudo sobre Portugal, tanto que estes sabiam muito mais da geografia do domi-nador do que de sua própria região. Todo material didático oficial que chegava às escolas timorenses era o mesmo que era usado nas escolas públicas portuguesas, pois, o português não re-presentava uma ameaça para as línguas com as quais coabita.
Segundo Forganes (2001) isso se deve ao fato de o português ter menos prestígio internacional. Em todas as colônias conquistadas mundo afora, os portugueses difundiram seu idioma através do ensino, que impregnou as línguas locais tanto de expressões, vocábulos como até mesmo das estruturas sintáticas do português, tanto que Forganes (2001, p. 434) ao falar da língua da resistência e da identidade cultural relata que “ foi o fato de falar português e a influência de Portugal que deram ao Timor-Leste uma identidade distinta das outras 13 mil ilhas e 200 milhões de habitantes do arquipélago indonésio.”
Ao tratar da identidade timorense percebe-se que a história de Timor-Leste se confunde com a história de seu primeiro colonizador, Portugal. Tanto que, Almeida (2008) destaca que foi no ano de 1975, que ao se beneficiar da Revolução dos Cravos e dos acontecimentos de 25 de Abril de 19742 em Portugal, que culminaram com a queda da ditadura de Salazar, Timor-Leste declarou a sua independência, à luz dos conflitos internos de Portugal. No período que se seguiu ao “25 de Abril de 1974”, em que as palavras de ordem em Portugal eram as de autodeterminação para os povos colonizados e de imediata retirada das colônias, Timor-Leste conquista a libertação e organiza-se politicamente com a criação dos três partidos: UDT, FRETILIN e APODETI (BOLINA, 2005).
[1 Desluto: Confraternização familiar que visa parar de usar roupas negras pela morte de ente querido. Ocorre um ano após a morte do familiar.]
[2 Revolução dos Cravos refere-se a um período da história de Portugal resultante de um golpe de Estado militar, ocorrido a 25 de Abril de 1974, que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e que iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime demo-crático, com a entrada em vigor da nova Constituição a 25 de Abril de 1976. Este golpe é conhecido pelos portugueses como 25 de Abril.]
Os conflitos em Portugal resultaram no abandono de sua colônia, Timor-Leste; então, coube ao partido FRETILIN, a Frente Revolucionária pelo Timor-Leste Independente, em 28 de Novembro de 1975, proclamar a independência de Timor-Leste. Nascia então, a República Democrática de Timor-Leste. Independência que seria curta, pois, Timor-Leste estava prestes a conhecer seu novo algoz.
Bolina (2005) relata que nove dias após a proclamação da independência de Portugal, o território timorense foi invadido por tropas militares da República da Indonésia, que nessa época vivia sob a ditadura de Suharto, e tornou-se, durante os próximos 24 anos, na pobre e maltratada 27ª província indonésia. Com isso, o período de colonialismo português terminava e iniciava-se o período do neocolonialismo indonésio.
Domínio indonésio
Para avaliar o impacto nos dias de hoje da ação indonésia em território timorense se faz necessário revisitar a história linguística da Indonésia; com isso se perceberá porque a reintrodução da língua portuguesa em Timor-Leste parece fadada ao fracasso.
Timor-Leste respira atualmente com uma alma linguística indonésia. Entre os estudos sobre linguística indonésia, destacam-se os de Ricklefs (1993) e Zahorka (2007). Estes autores descrevem a Indonésia como sendo um a-grupamento de pequenos estados independentes, que tinham em comum apenas as influências do hinduísmo e do budismo até o Século XVI. O divisor de águas foi a chegada dos europeus ao arquipélago, fato ocorrido na época das grandes navegações. Esta condição possibilitou a conquista da Indonésia pelos europeus, entre eles os britânicos e também os portugueses, mas principalmente pelos holandeses, que chegaram com suas línguas e suas culturas.
A Indonésia, segundo retratam autores como Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) fazia parte da Companhia Holandesa das Índias Orientais desde o princípio do século XIX. Esse período é conhecido na história indonésia como a “Era de Ouro da Indonésia”, pois foi nessa época que os europeus modernizaram a agricultura do país, o que possibilitou grandes riquezas para a nação.
[3 Hadji Mohamed Suharto (Kemusuk, Yogyakarta, 8 de Junho de 1921 — Jacarta, 27 de janeiro de 2008) foi um general e presidente da Indonésia entre 1967 e 1998. Em 30 de Setembro de 1965, Suharto orquestrou um golpe, apoiado pela CIA, que foi acompanhado pelo massacre de comunistas e democratas indonésios e que resultou num genocídio que fez entre 500 mil e dois milhões de víti-mas, perante a indiferença mundial.]
As mudanças da Indonésia enquanto nação estão diretamente relacionadas aos acontecimentos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial na Europa, quando a Holanda foi ocupada pelos alemães. Foi nesse período que se iniciou a liberta-ção indonésia de seu colonizador. É importante destacar que, durante a Segunda Guerra Mundial, a Indonésia, a exemplo de Timor-Leste, também foi tomada pelos japoneses.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) relatam que depois de um período de ocu-pação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial, o governo holandês promoveu profundas reformas democráticas que refletiram na Indonésia. Mudanças que culminaram com a consolidação do Estado indonésio atual. Com isso, a Indonésia se tornou independente em 1949.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) informam que embora só tenha tido sua in-dependência reconhecida em 1949, a República da Indonésia oficialmente nasceu antes, no dia de 17 de Agosto de 1945. Sukarno4, um dos líderes nacionalistas foi o primeiro presidente da nova República. Nos anos que se sucederam entre as décadas de 1950 e 1960, Sukarno alinhou o país pelo socialismo e entrou em guerra com a Malásia, uma das nações vizinhas. A história da Indonésia começa a se escrever junto com a história de Timor-Leste com a ascensão de seu algoz, o ditador indonésio Suharto. Foi em 1965, que Sukarno sofreu uma tentativa de golpe de estado, entretanto, este foi impedido pelo general militar Suharto.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) contam que o general Su-harto aproveitou-se da situação e após alguns massacres, tomou o poder da Indo-nésia. Suharto foi reeleito pelo povo por cinco vezes consecutivas, e nesse período anexou o Timor-Leste ao estado indonésio.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) destacam que Suharto esteve sob pressão de uma crise financeira que assolou a Indonésia no final da década de 1990. Esse acontecimento o obrigou a renunciar em 1997, fato que fez reascender o desejo de libertação dos timorenses. Ainda em 1997, o vice-presidente Bacharuddin Jusuf Ha-bibie foi empossado em seu lugar e permaneceu no cargo até 1999, quando concor-reu a reeleição e perdeu para a filha de Sukarno, Megawati Sukarnoputri.
[4 Sukarno (Surabaia, 6 de junho de 1901 — Jacarta, 21 de junho de 1970) foi presidente da Indonésia de 1945 a 1967. Como muitos javaneses, Sukarno não tinha sobrenome.]
Megawati não foi empossada nessa ocasião, pois seu partido a substituiu por Abdurrahman Wahid. Nessa época, as fraquezas internas da Indonésia deram impulso à guerrilha em Timor-Leste, e ao mesmo tempo, Megawati assumiu a presidência da Indonésia. A pequena ilha timorense passa a influenciar no destino de seu dominador, a Indonésia. Trazendo a história indonésia em uma vertente educacional, percebe-se co-mo historicamente os indonésios conseguiram abolir idiomas alóctones do país, fato que se repetiu com a língua portuguesa em Timor-Leste.
Para Forganes (2001), quando a Indonésia se tornou independente da Ho-landa, aboliu totalmente o idioma holandês do país. A língua de comunicação com o mundo passou a ser o inglês, ensinado nas escolas. Como língua nacional, embora as lideranças políticas fossem todas da ilha de Java, adotou-se o malaio, falado em boa parte do território indonésio com o nome de bahasa indonésio.
Suharto impôs o idioma como princípio de unificação do país e para a criação de uma identidade nacional. A mesma imposição de unificação nacional através da língua malaio se aplicou ao Timor-Leste, onde após a invasão em 1975, o ditador Suharto decidiu banir todos os professores que davam aulas em português das salas de aulas timorenses, sendo substituídos por professores que ensinavam em bahasa indonésio, formando essa e as gerações seguintes nesse novo idioma. O choque inicial de ter um professor dando aulas em outra língua se transformou em uma arma de lavagem cerebral, e um golpe fatal contra a língua do antigo dominador.
Relatos dos professores timorenses que viveram nesta época e que participaram de cursos de formação de professores da Cooperação Brasileira em Educação nos últimos anos informam que muitos desses profissionais foram perseguidos, e a maioria fugiu para as montanhas. São relatadas histórias desse período como prisões de professores em vários distritos que posteriormente eram levados para a ilha de Ataúro, relatos regados a fome, ódio, dor e violência.
Durante o domínio indonésio, muitos professores timorenses eram “premia-dos” pelos militares indonésios com falsas bolsas de estudos em Jacarta, capital da Indonésia. Entretanto, encontravam apenas outra Jacarta, esta, em território timorense, assustadoramente conhecida como Jacarta II. Os professores timorenses relatam que muitos dos seus colegas eram levados para Jacarta II e do alto de um penhasco eram lançados um a um. Quem sobrevivia, desaparecia com medo, e muitos fugiam para a Austrália e para Portugal. Esses acontecimentos faziam crescer o ódio e o desejo timorense de libertação.
Forganes (2001) relembra que com a invasão indonésia e com a proibição do português, a Igreja Católica adotou o tétum como língua litúrgica, e teve de traduzir o missal e partes da Bíblia. Relembra também que por oposição à dominação cruel dos indonésios, o tétum incorporou muitas palavras e estruturas portuguesas, com isso o português sobrevive em tempos de ocupação indonésia. Entretanto, apesar de incorporar palavras portuguesas, na atualidade, os ti-morenses que não falam a língua portuguesa, não conseguem diferenciar quais se-riam essas palavras que estão no tétum, mesmo nas mais faladas como “obrigado” e “boas tardes”; com isso, o português tem termos e expressões faladas, mas não percebidas como pertencentes à língua portuguesa.
Ao final de 1999 a realidade educacional de Timor-Leste mostrava que a língua indonésia, e as metodologias usadas pelo governo indonésio para unificar a nação através da língua havia surtido efeito. Os timorenses agora falavam, escreviam e liam em bahasa indonésio. A herança de Suharto persiste até na atualidade, onde os canais de televisão mais assistidos são da Indonésia, principalmente os que exibem telenovelas, inclusive as produções brasileiras, dubladas.
Os conflitos entre Timor-Leste e Indonésia se intensificam no final da década de 1990 e uma luz começa a brilhar no final de uma grande jornada. Graças ao trabalho diplomático dos “exilados” surge a proposta de realizar um plebiscito para o povo timorense decidir se permaneceria ou não como parte do Estado indonésio; em breve os timorenses iriam decidir seu futuro.
A luz que brilha em meio à escuridão é uma luz de fogo que queima o sonho macabro de Suharto de unificação. Forganes (2001) esteve presente no momento da libertação do domínio indonésio como repórter, e relata acontecimentos daquele final de setembro e começo de outubro de 1999:
Dili cheira a queimado, morte e destruição. A visão é alucinante. Quarteirões inteiros de casas brancas incendiadas, devoradas por enormes labaredas negras, saqueadas, destruídas. (...) Até onde a vista alcança, tudo é desolação. (...) As ruas estão repletas de lixo, destroços, o cheiro é insuportável. Só as igrejas escaparam aos in-cêndios e, mesmo assim, nem todas (p. 27).
O Timor-Leste fecha um novo ciclo, o do domínio indonésio, o ano é 1999. Uma nação começa a surgir. Hoje, passada mais de uma década do fim do domínio indonésio e da reimplantação do português como segunda língua oficial do país, o que se percebe é que um dos impasses na formação da identidade timorense é a reação negativa dos jovens que foram educados em indonésio à restauração da língua portuguesa. A frase da moda é “o português é muito difícil”, frase repetida e pro-clamada de leste a oeste da ilha do crocodilo.
Todo o sangue derramado pelos indonésios não os fez desejar banir o bahasa indonésio; a identidade unificada indonésia sonhada por Suharto vive com a mídia que invade as residências timorenses com a televisão. A explicação para isso pode estar relacionada também ao fato de a maioria dos timorenses possuírem fami-liares no lado oposto da ilha, familiares que decidiram continuar sendo indonésios no final dos conflitos.
Terceiro período: uma nova nação do mundo
O surgimento de uma nova nação, formada por diversas etnias, que falavam e falam entre 17 e 37 línguas diferentes é uma realidade. Entretanto, como Albuquerque (2010) relembra, durante a ocupação indonésia tentou-se tratar o povo timorense como um só, reduzindo a nação, no plano linguístico, a duas línguas – tétum e malaio. Agora, como nação livre, a língua malaia foi substituída oficialmente pela língua portuguesa, tida como um símbolo de resistência, mas não de uma língua falada.
Surge uma nova nação, um amanhecer com um idioma perdido em meio à escuridão que assolou um país durante 24 anos. Um país em busca de uma identidade própria sob uma intervenção dita humanitária que é regada a interesses dos mais variados que fizeram países como o Brasil aportar em terras tão distantes com um programa de cooperação educacional que introduz ideais tão surrealistas quanto se pode supor, ao se conseguir unir professores de diferentes formações e diferentes concepções culturais de um Brasil alheio a Timor-Leste, professores de comportamentos etnocêntricos por sua própria natureza.
Timor-Leste, agora é assim, sobrevive entre a escuridão e o amanhecer. Atualidade: educação e sociedade A educação e os campos que corroboram com o desenvolvimento do ensino perpassam os ideais dos educadores, pois, existem questões que vão de encontro à reforma educacional. Essas questões são chamadas de “crises”, ou seja, são os entraves da educação globalizada. Um fantasma que assusta os educadores timorenses.
Timor-Leste vive um período de validação do conhecimento em função de pessoas e instituições dos mais diversos países, que entendem que conhecem a sociedade timorense, e com isso usam esse conhecimento para matar a identidade através da ideia de que Timor-Leste, a exemplo de todas as sociedades do mundo, evoluirá para o ideal de sociedade vigente na Europa ou em seus países de origem, segundo diretrizes de etnocentrismos vigentes, construindo com isso uma nova identidade para o povo timorense.
As mudanças são forçadas pela comunidade internacional, senão vejamos alguns exemplos da criação da “crise da educação” a partir de contextos históricos de Timor-Leste e do mundo moderno. Stavenhagen (1999), membro da Comissão Internacional da UNESCO sobre Educação para o Século XXI, exatamente no ano em que Timor-Leste tem sua guerra pela independência da Indonésia, em 1999, relata que a educação é muito mais do que livros, que o ato de educar exige comprometimentos que se fundamentam em pilares. Entre esses pilares que Stavenhagen destaca está o aprender dos seres humanos a viver juntos neste novo mundo inter-relacionados, com as suas migrações em massa e os conflitos étnicos, bem como, aprender a conhecer o desenvolvimento de competência dos alunos em interpretar e explicar os fatos, do pensamento racional, que não deve ser encarado como uma simples finalidade de adquirir o conhecimento, mas também se deve almejar a sabedoria. Mais de dez anos após Stavenhagen proferir este discurso, as dádivas dos pilares educacionais parecem ainda padecer de patologias em muitos países em desenvolvimento.
Stavenhagen (1999) falava sobre o mundo em que vivemos e da necessidade de aprender a fazer, de adquirir competência para enfrentar as mudanças tecnológicas e se fazer útil nos mercados de trabalho, e aprender a ser, de um desenvolvimento pleno como um indivíduo livre e como um membro responsável de uma sociedade maior. Um discurso que sem dúvida vai ao encontro do repensar da educação na última década, tendo em vista que as crises educacionais se tornaram cada vez mais visíveis, indicando as enfermidades que se aproximam nos processos de ensino e aprendizagem no mundo inteiro.
Um repensar da educação em um país pós-guerra, como Timor-Leste, onde a crise apresenta características peculiares, pois engloba fatores que por muitas vezes se tornam alheios aos próprios timorenses, que ao fugir de uma destruição cultural cruel por uma ação de colonização pela Indonésia, foram levados a cair sobre uma nova forma de aculturamento, a cooperação internacional. Esse tipo de cooperação, com seus preceitos e seu modo de pensar, que expõe o homem timorense a uma vitrine com um rótulo de alguém que precisa ser salvo de um massacre que o mundo não consegue ver, ou não se interessa em ver, pois não entende o ser social timorense.
Nesse contexto surge uma nova nação chamada de Timor-Leste. Para o gênesis de Timor-Leste acontecer muitos conflitos cobriram o país de sangue e glória, como já se citou anteriormente. Entretanto, entender o novo Timor-Leste perpassa entender as causas dos conflitos, que interesses teriam tantos países em ajudar uma nação tão pequena perdida no sudoeste asiático. Os conflitos tinham um plano de fundo: os interesses econômicos e políticos dos Estados Uni-dos, da Indonésia e principalmente, da Austrália.
A Austrália e seu comportamento dúbio, que de aliado do inimigo indonésio nos anos de 1970 se transforma em um defensor de Timor-Leste. Interessante ressaltar as palavras de Falur Rate Laek, comandante da Falintil, o exército de libertação de Timor-Leste, ao falar sobre os conflitos pela independência no final do século XX para entender a formação da identidade cultural do timorense:
Os indonésios tinham armas dos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Austrália, os campeões da defesa dos direitos humanos no mundo. Nós nos orgulhamos porque conseguimos resistir. Tudo o que nós recebemos foi apoio diplomático. O Timor está situado numa área geopolítica em que todos os países apoiavam a Indonésia, não havia como introduzir nada aqui. É um problema de interesse eco-nômico e de hipocrisia mundial (citado por FORGANES, 2001).
Pelo menos 200 mil timorenses morreram no genocídio praticado pelo exército indonésio apoiado pelos americanos e australianos. Percebe-se que nem mes-mo o massacre timorense comoveu os chamados campeões dos direitos humanos. Os interesses econômicos se sobressaíram aos interesses sociais, o que fez com que Estados Unidos e Austrália se unissem à ditadura militar indonésia e apoiassem a invasão a Timor-Leste.
A Austrália foi o primeiro país a legitimar a invasão indonésia na década de 1970, e o fez pelo temor americano de ter uma “Cuba” do lado da Austrália, em alusão a comparar Timor-Leste à nação de Fidel Castro, principalmente com a Revolução dos Cravos em Portugal que introduziu naquele país um gover-no socialdemocrata e o avanço comunista na Indochina, caracterizado pelos gover-nos de Vietnã, Camboja e Laos. Em plena guerra fria, ter um novo país comunista assustava os australianos e os americanos.
A identidade timorense naquele momento se baseava nos ideais de justiça dos revolucionários timorenses, e isso não era politicamente correto naquele contexto. Senão, comparemos os discursos proferidos pelos aliados nas décadas seguintes à invasão. No discurso histórico de Bob Hawke, Primeiro-Ministro da Austrália em 1990, referindo-se à invasão do Kwait: “É importante para a Austrália que o mundo compreenda que os países grandes não podem invadir seus vizinhos peque-nos impunemente” (SANTANA, 1997, p.47 apud LAMARCA, 2003).
E também nas palavras de um funcionário graduado do Ministério das Relações Exteriores da Austrália, em meados da década de 1970:
Não vejo porque tanto barulho! O fato real é que só existem 700 mil timorenses; nós estamos preocupados mesmo é com nosso relacionamento com 130 milhões de indonésios (SANTANA, 1997, p.47 apud LAMARCA, 2003).
Sousa (2001) ao tratar do processo de descolonização do território timorense por Portugal destaca que este foi brutalmente interrompido em 1975 por uma ocupação prolongada e de violenta colonização da Indonésia, que foi definitivamente rejeitada e dissolvida pelo referendo de agosto de 1999.
As pressões internacionais aumentaram com a violência e o massacre do povo timorense e com isso, depois de forte condenação da opinião pública mundial, do comportamento do exército indonésio, Estados Unidos e Austrália trocam de lado e passam a defender os timorenses com ameaças de repressões econômicas contra a Indonésia.
Esta foi seguida pela violência brutal, que se encerra com a intervenção das Nações Unidas, cujo comando das forças de paz era liderado pelos australianos. A ONU entrou em Timor-Leste para administrar o processo de transição para a independência, dez anos se passaram e ela continua lá, mesmo com o país já es-tando com seu segundo presidente eleito pelo povo, José Ramos Horta.
Indubitavelmente, Timor Leste tornou-se uma questão importante no discurso político de muitos países, incluindo o Brasil. Sobre Timor-Leste neste novo cenário mundial, Sousa (2001) diz que o país é “objeto de preocupação para a política internacional e solidariedade”. Um interesse econômico que atende pelo nome de petróleo.
Senão vejamos: na visita do então presidente do Brasil a Timor-Leste em 2008, Luís Inácio Lula da Silva, entre os discursos diplomáticos e de apresentação dos professores brasileiros, o presidente Lula proferiu a seguinte frase: “Hoje estão vindo os professores brasileiros, amanhã quem sabe vem a Petrobrás”. O discurso foi seguido de um sorriso constrangedor tanto da comitiva brasileira quanto das autoridades timorenses que estavam naquela manhã de julho de 2008 na escola que o Senai mantém em Dili.
Constrangedor porque o petróleo timorense está nas mãos dos australianos. Interessante também perceber no cotidiano do povo Maubere, que é outra denominação para o timorense, que os processos de introdução de uma nova cultura não precisam ser de dominação ou de invasões sanguinolentas.
Observando as cooperações internacionais em Timor-Leste, percebe-se que o comportamento social do homem ocidental tem contribuído como um fator importante e corrosivo da identidade timorense, pois se encontram nas ruas de Dili, como bem diz Sousa (2001): “até comportamentos sociais praticamente desconhecidos para as populações locais”.
Nos dez anos seguintes à independência da Indonésia, o que se percebe é que os comportamentos sociais dos internacionais se tornaram “crises de identidade” inconscientes na mudança da visão de mundo do povo timorense. Como exemplos estão as mulheres estrangeiras usando biquínis nas praias de Dili do mesmo lado de mulheres timorenses que se banham completamente vestidas, mesmo as que usam calças jeans, isso tudo sob o olhar atento de uma nova geração de timorenses. Geração que há mais de dez anos quando ocorreu a independência eram crianças e hoje, muitos já são pais de família.
Sousa (2001), neste contexto, afirma que o imediatismo do discurso político ou a retórica da solidariedade preencheu o espaço do que não foi estudado e interpretado, o que não é ainda conhecido.
Estas “crises de identidade” se fortalecem com uma febre de juventude baseada na aceitação e incorporação do novo em detrimento do velho. Retomando o discurso cooperativista, relembrando Mauss (1974) em suas considerações sobre dádivas, é interessante perceber que as sociedades progrediram na medida em que elas mesmas aprenderam a estabilizar suas relações, a dar, a receber e a retribuir.
Hoje, percebe-se que a nação timorense superou os conflitos com seus dominadores principais, a Indonésia e Portugal, as relações sociais e diplomáticas se estabilizaram, e com isso, as pessoas aprenderam a satisfazer interesses mutuamente e, enfim, a defendê-los sem terem que recorrer às armas.
Entretanto, como o mesmo Mauss (1974) ressalta ao falar de nosso mundo civilizado, as classes e as nações, bem como os indivíduos, devem aprender a opor-se sem massacrar-se e a dar-se sem sacrificar-se uns aos outros, ou seja, o remédio da crise que envenena a estabilização da nação timorense é um fator primordial na construção, na destruição ou na reconstrução da identidade timorense. Esta é uma dádiva a ser conquistada pelos timorenses diante de tantos discursos de globalização.
Nesse processo de profilaxia entra em cena o Banco Mundial, e seu discurso de que, para garantir a estabilidade econômica dos países em desenvolvimento, as questões sociais tornaram-se essenciais. Nos primórdios de 1999, ano da libertação de Timor-Leste do domínio indonésio, o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn declarou, segundo relata Altman (2002), que a justiça social é uma questão tão importante quanto o crescimento econômico, e que em curto prazo você pode manter a desigualdade. Mas em longo prazo não dá para ter uma sociedade estável. E conclui que é necessário criar oportunidades para que as pessoas pobres se desenvolvam, investindo em educação e em reforma agrária.
O discurso internacional de justiça social aliado ao crescimento econômico sem gerar desigualdades, soa muitas vezes, como um efeito placebo em diversos segmentos de uma nação, principalmente na reforma educacional e mesmo da re-forma agrária de qualquer nação em desenvolvimento. Senão vejamos, analisando a história recente de Timor-Leste.
Segundo Simião (2006) com o fim da Untaet, que foi a administração transitória de Timor-Leste, em que as Nações Unidas tomavam para si a montagem dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de Timor-Leste, sob o comando do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Melo, e a restauração oficial da independência da República Democrática de Timor-Leste, em 20 de maio de 2002, os holofotes da mídia internacional tornaram-se bem mais modestos no país. Sem holofotes, a nova nação aliada, a Austrália, conseguiu seu triunfo, o controle das reservas de petróleo em Timor-Leste.
O mesmo Simião (2006) relata como é impressionante que um universo de valores internacionais circule tão forte pelo país, em especial pelas ruas de sua capital, Dili. Conceitos, valores, modos de pensar e estar no mundo, próprio de ideologias globalizadas, fazem-se presentes com a mesma força e vigor que formas muito particulares de se organizar a vida cotidiana, que contribuem para as questões que interferem na construção da identidade do povo timorense.
O discurso proferido não se revela no cotidiano das pessoas na atualidade, principalmente porque os timorenses ainda necessitam de arroz subsidiado pelo governo e de canco, um vegetal plantado nos esgotos de Dili, para alimentar as patologias de suas mentes e a homeostasia de seus corpos. Como diria Hegel (apud Bambirra, 2010), a Filosofia e o real aparecem como o processo que produz e per-corre os seus momentos; e o movimento total constitui o positivo e sua verdade. Movimento esse que também encerra em si o negativo, que mereceria o nome de falso, se fosse possível tratar o falso como algo que se tivesse de abstrair.
A educação em Timor-Leste sofre de uma patologia, uma febre, caracteriza-da por refletir na sala de aula os sintomas que afligem a sociedade timorense, que é resultado de crises, onde interesses políticos corroem a identidade nacional. A realidade da sala de aula é uma e a da sociedade é outra, são campos antagônicos que propiciam a necrose da epistemologia docente.
A crise na sociedade refletida na educação timorense
As questões políticas de Timor-Leste ressaltam historicamente a máxima de que o inimigo de ontem é o aliado de amanhã, senão vejamos o que relata Lamarca (2003) sobre a ação australiana em terras Maubere: que desde a invasão indonésia em 1975, até a intervenção internacional em 1999 a política australiana para o Timor-Leste se modificou, de uma posição conivente com a invasão e o domínio indonésio durante mais de vinte anos, para uma postura de engajamento na discussão sobre o status futuro do território, que culmina com a participação do país na intervenção internacional, assumindo o papel de liderança da força multinacional.
Os interesses econômicos se justificam pelo controle australiano do petróleo timorense, que divide opiniões, principalmente quando analisados em como se apre-sentava o país quando este assinou o contrato de exploração petrolífera em Timor-Leste. Por conseguinte, os anos que se sucederam à independência foram marca-dos pela forte presença australiana em terras Maubere. Essa seria a primeira crise que iniciou o envenenamento da identidade nacional.
Nas décadas de 1970 e 1980 a quantidade de timorenses que adquiriam cidadania australiana residindo em Darwin, cidade australiana mais próxima da ilha timorense, foi significativa. Foi nesta mesma época que os professores timorenses foram expulsos de suas escolas e substituídos por professores indonésios, como já citado anteriormente como um fato sufocador da língua portuguesa em benefício do bahasa indonésio. Entretanto, mesmo após a saída dos indonésios, as escolas ainda refletiam o colonizador.
Os livros estavam defasados e tinham abordagens tecnicistas, e os professores com ideais de uma educação libertadora e confusa, enfim, um sintoma de uma enfermidade que se aproximava. Entretanto, após a libertação, uma parcela dos timorenses que fugiram para a Austrália e Portugal voltou, e agora representavam um novo perfil de homem timorense, com novos valores sociais e morais e com diplomas de curso superior, bem diferente do povo que sofreu aculturamento indonésio imposto nos anos de dominação, que por vinte e quatro anos fez do povo timorense, ainda que cristão, seguidor de costumes islâmicos, típicos da maior nação muçulmana do mundo, a Indonésia.
O choque entre os dois mundos que se sucedeu fez nascer uma geração que nos anos de 2008 a 2010 se observa como envergonhada pelas suas tradições e seus costumes, entre eles o chamado barlaque. O barlaque, mencionado anteriormente, é um contrato de casamento tradicional entre as famílias, em que o noivo deve pagar um dote à família da noiva. O dote é acordado em prestações pagas com animais como cavalos e búfalos, e dinheiro vivo, conforme as posses da família do noivo, que ao ser aceito pela família da noiva, passará a ter plenos poderes sobre o destino da esposa. No caso do noivo não conseguir pagar sua divida acaba sucumbindo aos interesses da família da noiva, sendo muitas vezes tratado como um escravo. Essa tradição começou a ser banida de muitos distritos de Timor-Leste, mas muitas famílias ainda a cultivam, principalmente no distrito de Los Palos, tido como o lugar com as noivas mais belas e caras.
Atualmente os jovens, principalmente nos grandes centros, preferem crer que “mais vale o amor”, (opinião nem sempre compartilhada pelas famílias de ambos) ainda que não manifestem nenhuma forma de afeto em público, pois, em Dili não se vê casais namorando em público o que seria um reflexo da cultura muçulmana.
A crise se manifesta nos questionamentos da sociedade sobre suas tradições e sobre as modernidades dos timorenses vindos da Austrália e de Portugal e também dos cooperativistas, em que jovens timorenses almejam uma libertação, que estes tratam como “sexo livre”, que eles entendem haver entre os internacionais.
Entretanto, esse “sexo livre” localmente se traduz na indústria de prostituição chinesa, tailandesa e indonésia. A mesma crise também se reflete na proliferação do protestantismo na ilha, com grande número de missionários oriundos da Amazônia brasileira, cuja aparência física se confunde com timorenses e indonésios, que com suas atuações começam a minar os alicerces e os valores da tradicional igreja católica timorense.
A construção de uma nova identidade nacional busca incluir a tradição e o aculturamento cooperativista. Neste contexto surge a língua portuguesa, que passa a ser tratada como um idioma elitista, falada por membros da alta sociedade timorense em bares e restaurantes frequentados por internacionais, onde é comum encontrar essa parcela do novo timorense degustando alimentos da culinária internacional, e não mais os pratos tradicionais a base de arroz e verduras.
O perfil do novo cidadão timorense com sua nova identidade que mescla o tradicional e os costumes dos internacionais que ali habitam, forma uma sociedade de contrastes culturais. De um povo que ainda guarda luto por um ente querido durante um ano usando roupas pretas, e faz festas de desluto para tirar essas roupas, e ainda assim se faz parecer um estrangeiro, como se renegasse sua identidade em face de ter padecido por uma febre de juventude que cria uma nova identidade, uma identidade híbrida. Esse reflexo de sociedade não se espelha na maioria das escolas timorenses.
Afinal, o cidadão de identidade híbrida agora frequenta a escola internacional ou a escola portuguesa, não vai à escola pública. Entretanto, a escola pública, onde está a grande massa dos jovens timorenses, ainda traz metodologias que incluem o uso da “palmatória”. Curiosamente, a violência escolar é aceita por grande parte da sociedade, principalmente os mais pobres, pois entendem que esta se baseia em discursos como “é preciso ter disciplina” ou, quando contestados por estrangeiros, argumentam que “as crianças do ocidente são diferentes das crianças do oriente”.
A escola timorense ainda reflete um padrão comportamental típico de países de governos militares, e nem poderia ser diferente, afinal, Timor-Leste esteve sob domínio indonésio durante os anos de chumbo do país, da sanguinolenta ditadura Suharto, e anteriormente esteve sob domínio do governo português da ditadura Salazar, como detalhado no início do capítulo. São as crises do passado demonstrando seus sintomas no presente, que caminham por feridas não curadas no país, marcas diferidas que resistem na educação, que já se apresenta em estado febril.
Carneiro (2010), um professor brasileiro membro da cooperação em educação, ao relatar sua impressão de Timor-Leste ao chegar a Dili em 2008, descreve a diversidade de línguas utilizadas no país, não só nas placas e sinalizações, mas também nos diversos contextos de interação. O mesmo autor relata que observou pessoas falando em tétum nas ruas, nas feiras e nas casas; professores portugueses e brasileiros ensinando e interagindo em língua portuguesa nas universidades e em cursos de formação de professores; trabalhadores internacionais dos mais diversos países conversando em inglês nos restaurantes, nas agências internacionais e nas sedes de ONGs; comerciantes de diferentes nacionalidades, mas principalmente indonésios e chineses, utilizando o indonésio e o inglês, dentre os quais ainda se veem alguns que utilizam o hakka ou o yue, línguas vindas do sul da China que es-tão presentes no país desde tempos remotos.
Essa realidade das ruas de Dili relatada por Carneiro (2010) se amplia nos distritos, onde cada localidade possui uma língua materna, que sai da sociedade e vai parar na sala de aula e com isso surge mais uma crise de identidade que padece a educação timorense. Este outro sintoma do estado febril da educação timorense, os conflitos de línguas durante a ministração das aulas nas escolas timorenses ocorre, pois as escolas timorenses recebem livros doados pelo governo português, que ainda no século XXI retratam a realidade de Portugal, como se revivessem o aculturamento dos pais; e em menor escala recebem as sebentas, que são os materiais didáticos ela-borados em curto prazo pelos professores da cooperação brasileira e em parte também pela cooperação portuguesa; e possuem ainda em suas bibliotecas os livros didáticos dos tempos de domínio indonésio, caracterizados por abordagens tecnicistas.
Surge então um grave dilema educacional: como usar livros escritos na se-gunda língua oficial do país, o português, se os alunos e os professores não têm proficiência neste idioma? E como não usar os livros em língua bahasa indonésio idealizados em abordagens tecnicistas desatualizados, livros estes marcados pela ditadura militar de Suharto, em um país que agora respira a liberdade de expressão?
A solução de muitos professores timorenses tem sido escrever no quadro um resumo da aula em língua portuguesa, e como não há domínio da arte da argumentação em português, nem pelo professor e nem pelo aluno, faz-se uma tradução livre do conteúdo, que se segue a uma atividade sobre o tema para então finalizar a aula; ou se produz material em língua materna, mas com as deficiências desses dialetos de termos técnicos característicos de todas as disciplinas. Com isso a educação timorense adoece cada vez mais.
São os verdadeiros alienígenas na sala de aula, como enfatiza Santomé (2008), ao tratar das culturas negadas e silenciadas em um currículo, ao dizer que uma das finalidades fundamentais de toda intervenção curricular é a de preparar os alunos para serem cidadãos ativos e críticos, membros solidários e democráticos de uma sociedade solidária e democrática.
Entretanto, o que se percebe na educação timorense é que a intervenção que está ocorrendo, que parte de Portugal e em menor escala do Brasil, só se preocupa com o conhecimento universal, negligenciando a ecologia dos saberes e o multiculturalismo timorense.
Santomé (2008) conclui dizendo que é preciso chegar a níveis maiores de reflexão em torno dos pressupostos, das normas e dos procedimentos que subjazem às diferentes práticas e conteúdos escolares. Os currículos oficiais de Timor-Leste foram desenvolvidos por universidades portuguesas, e os manuais didáticos produzidos no país são elaborados por brasileiros, ou seja, como bem diz Grignon (2008), a escola conduz espontaneamente ao monoculturalismo. A construção dos saberes não se realiza nunca em estado puro, de forma independente daquilo ao qual estão associados esses saberes, tanto na forma quanto no contexto em que são transmitidos.
Semprini (1999), ao tratar sobre o multiculturalismo enfatizado nas raízes históricas e na situação atual, afirma que a diferença é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e encontra-se inserida no processo histórico. A questão escolar, a prática e os campos antagônicos, as crises tendem a mostrar o caminho a se seguir ou se evitar. Tudo isso faz parte de um processo de reforma educacional que ocorre todos os dias nas escolas do mundo inteiro, independente da vontade dos pensadores em educação, pois termina por refletir uma sociedade em constante mutação.
Diante de tudo isso, percebe-se que as questões que interferem no processo evolutivo da educação estão intimamente ligadas às relações sociais entre o estado e os cidadãos. Como bem diz Santos (2008), estas relações são marcadas pela dominação, que estabelece a desigualdade entre cidadãos e Estado, bem como entre grupos e interesses políticos organizados.
Esse é o perfil da educação de Timor-Leste nos últimos anos. E estas são as verdadeiras crises que afetam a educação timorense, pois, como o mesmo Santos (2008) diz, que é através do conjunto das relações sociais que se criam identidades coletivas de vizinhança, de região, de raça, etnia, religião que circulam entre os indivíduos a territórios físicos ou simbólicos e a temporalidades partilhadas passadas, presentes ou futuras. A construção de uma nação capitalista no novo milênio e a matriz de seu engrandecimento parte de uma dialética capaz de influenciar gerações e que, nas horas difíceis, demonstram sua maior força.
A sociedade e seu aculturamento são tidos como as crises que levam ao engrandecimento de seu povo e a cicatrizes do seu sistema educacional. A crise parece não ter cura.
TEIXEIRA, E.R. Cooperação Internacional em Educação: o Programa Brasileiro de Qualificação Docente e Ensino de Língua Portuguesa em Timor-Leste. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Amazonas: Manaus, 2013.
“Recorda a tua fé guerreira, a lealdade, e a ternura do teu lar sem limites, nos caminhos do inesperado ou no improviso da partilha definitiva. Lembra pela última vez que a história da tua ancestralidade, é a história da tua Terra Mãe.” (Crisódio T. Araújo, poeta timorense)
Entre a escuridão, o amanhecer, e a uma nova escuridão, sombras e glórias permeiam o coração da nação dos crocodilos: Timor-Leste. Ao relatar a história de um país marcado por invasões e usurpações de sua soberania, faz-se necessário destacar que a República Democrática do Timor-Leste, como um dos países mais jovens do mundo, está localizada na parte oriental da ilha de Timor, tendo sua capital, Díli, localizada na costa norte.
Martins (2010) relata que o território do Timor-Leste faz fronteira a oeste com a província indonésia de Nusa Tenggara Timur, conhecida também como Timor Ocidental. Ao norte é banhado pelo Mar de Savu e pelo estreito de Wetar, enquanto que ao sul o Mar de Timor faz a ligação com a Austrália. Na parte ocidental da ilha en-contra-se o enclave de Oecusse, dentro do território indonésio, que a exemplo das ilhas de Ataúro e de Jaco fazem parte do território timorense. A história de Timor-Leste é marcada por três grandes períodos de colonização, que marcaram seu povo em gerações distintas. O primeiro período que perdurou por quatrocentos e sessenta e três anos foi de domínio de Portugal.
Martins (2010) informa que o período seguinte teve início a partir da invasão indonésia na década de 1970, quando Timor-Leste foi ocupado pela Indonésia e anexado como sua 27ª província, recebendo o nome de Timor Timur, caracterizando o segundo domínio, o indonésio. Em 30 de Agosto de 1999 o resultado do referendo organizado pela Organização das Nações Unidas, apontou que cerca de 80% do povo timorense optou pela independência. Nesse momento nascia uma nova era, a da liberdade.
Os períodos que retratam a luta pela liberdade e soberania da nação timorense passam a ser retratados neste capítulo, visando situar historicamente o país e entender os entraves que impedem ou explicam o desenvolvimento da educação em Timor-Leste na atualidade, bem como colocam em risco a sobrevivência da língua portuguesa no país.
Domínio português
Portugal, historicamente, é um país que através da época das grandes navegações, conquistou muitas partes do mundo, e na Ásia esta conquista atende pelo nome de Timor-Leste, entre outras colônias na região. O domínio de Portugal sobre Timor-Leste compreende os anos de 1512 a 1975.
Bolina (2005) relata que Timor-Leste esteve desde o século XVI em regime colonial sob a soberania dos portugueses, havendo um curto espaço de tempo nesse período de ocupação por outro país, no caso o Japão, durante a II Guerra Mundial, entre os anos de 1942 e 1945. No quesito educação, o período de dominação portuguesa em Timor-Leste pode ser retratado como uma extensão do modelo educacional português.
Como Forganes (2001) relata, o ensino nessa época seguia o que poderia se chamar de “modelo salazarista”, ou seja, era totalmente lusocêntrico, os timorenses eram obrigados a aprender sobre a história e a cultura do dominador, Portugal, e praticamente nada sobre a colônia, Timor-Leste. Esse “modelo salazarista” levou uma parte da elite timorense educada nessas escolas a menosprezar os dialetos locais, como té-tum, uma das línguas-mãe.
Na atualidade, ao conversar com timorenses com mais de 40 anos é comum relatos como os que certa vez ouvi enquanto participava de uma festa de desluto1 no bairro Bidau Lecidere, que no “tempo dos portugueses” estes eram obrigados a estudar tudo sobre Portugal, tanto que estes sabiam muito mais da geografia do domi-nador do que de sua própria região. Todo material didático oficial que chegava às escolas timorenses era o mesmo que era usado nas escolas públicas portuguesas, pois, o português não re-presentava uma ameaça para as línguas com as quais coabita.
Segundo Forganes (2001) isso se deve ao fato de o português ter menos prestígio internacional. Em todas as colônias conquistadas mundo afora, os portugueses difundiram seu idioma através do ensino, que impregnou as línguas locais tanto de expressões, vocábulos como até mesmo das estruturas sintáticas do português, tanto que Forganes (2001, p. 434) ao falar da língua da resistência e da identidade cultural relata que “ foi o fato de falar português e a influência de Portugal que deram ao Timor-Leste uma identidade distinta das outras 13 mil ilhas e 200 milhões de habitantes do arquipélago indonésio.”
Ao tratar da identidade timorense percebe-se que a história de Timor-Leste se confunde com a história de seu primeiro colonizador, Portugal. Tanto que, Almeida (2008) destaca que foi no ano de 1975, que ao se beneficiar da Revolução dos Cravos e dos acontecimentos de 25 de Abril de 19742 em Portugal, que culminaram com a queda da ditadura de Salazar, Timor-Leste declarou a sua independência, à luz dos conflitos internos de Portugal. No período que se seguiu ao “25 de Abril de 1974”, em que as palavras de ordem em Portugal eram as de autodeterminação para os povos colonizados e de imediata retirada das colônias, Timor-Leste conquista a libertação e organiza-se politicamente com a criação dos três partidos: UDT, FRETILIN e APODETI (BOLINA, 2005).
[1 Desluto: Confraternização familiar que visa parar de usar roupas negras pela morte de ente querido. Ocorre um ano após a morte do familiar.]
[2 Revolução dos Cravos refere-se a um período da história de Portugal resultante de um golpe de Estado militar, ocorrido a 25 de Abril de 1974, que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e que iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime demo-crático, com a entrada em vigor da nova Constituição a 25 de Abril de 1976. Este golpe é conhecido pelos portugueses como 25 de Abril.]
Os conflitos em Portugal resultaram no abandono de sua colônia, Timor-Leste; então, coube ao partido FRETILIN, a Frente Revolucionária pelo Timor-Leste Independente, em 28 de Novembro de 1975, proclamar a independência de Timor-Leste. Nascia então, a República Democrática de Timor-Leste. Independência que seria curta, pois, Timor-Leste estava prestes a conhecer seu novo algoz.
Bolina (2005) relata que nove dias após a proclamação da independência de Portugal, o território timorense foi invadido por tropas militares da República da Indonésia, que nessa época vivia sob a ditadura de Suharto, e tornou-se, durante os próximos 24 anos, na pobre e maltratada 27ª província indonésia. Com isso, o período de colonialismo português terminava e iniciava-se o período do neocolonialismo indonésio.
Domínio indonésio
Para avaliar o impacto nos dias de hoje da ação indonésia em território timorense se faz necessário revisitar a história linguística da Indonésia; com isso se perceberá porque a reintrodução da língua portuguesa em Timor-Leste parece fadada ao fracasso.
Timor-Leste respira atualmente com uma alma linguística indonésia. Entre os estudos sobre linguística indonésia, destacam-se os de Ricklefs (1993) e Zahorka (2007). Estes autores descrevem a Indonésia como sendo um a-grupamento de pequenos estados independentes, que tinham em comum apenas as influências do hinduísmo e do budismo até o Século XVI. O divisor de águas foi a chegada dos europeus ao arquipélago, fato ocorrido na época das grandes navegações. Esta condição possibilitou a conquista da Indonésia pelos europeus, entre eles os britânicos e também os portugueses, mas principalmente pelos holandeses, que chegaram com suas línguas e suas culturas.
A Indonésia, segundo retratam autores como Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) fazia parte da Companhia Holandesa das Índias Orientais desde o princípio do século XIX. Esse período é conhecido na história indonésia como a “Era de Ouro da Indonésia”, pois foi nessa época que os europeus modernizaram a agricultura do país, o que possibilitou grandes riquezas para a nação.
[3 Hadji Mohamed Suharto (Kemusuk, Yogyakarta, 8 de Junho de 1921 — Jacarta, 27 de janeiro de 2008) foi um general e presidente da Indonésia entre 1967 e 1998. Em 30 de Setembro de 1965, Suharto orquestrou um golpe, apoiado pela CIA, que foi acompanhado pelo massacre de comunistas e democratas indonésios e que resultou num genocídio que fez entre 500 mil e dois milhões de víti-mas, perante a indiferença mundial.]
As mudanças da Indonésia enquanto nação estão diretamente relacionadas aos acontecimentos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial na Europa, quando a Holanda foi ocupada pelos alemães. Foi nesse período que se iniciou a liberta-ção indonésia de seu colonizador. É importante destacar que, durante a Segunda Guerra Mundial, a Indonésia, a exemplo de Timor-Leste, também foi tomada pelos japoneses.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) relatam que depois de um período de ocu-pação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial, o governo holandês promoveu profundas reformas democráticas que refletiram na Indonésia. Mudanças que culminaram com a consolidação do Estado indonésio atual. Com isso, a Indonésia se tornou independente em 1949.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) informam que embora só tenha tido sua in-dependência reconhecida em 1949, a República da Indonésia oficialmente nasceu antes, no dia de 17 de Agosto de 1945. Sukarno4, um dos líderes nacionalistas foi o primeiro presidente da nova República. Nos anos que se sucederam entre as décadas de 1950 e 1960, Sukarno alinhou o país pelo socialismo e entrou em guerra com a Malásia, uma das nações vizinhas. A história da Indonésia começa a se escrever junto com a história de Timor-Leste com a ascensão de seu algoz, o ditador indonésio Suharto. Foi em 1965, que Sukarno sofreu uma tentativa de golpe de estado, entretanto, este foi impedido pelo general militar Suharto.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) contam que o general Su-harto aproveitou-se da situação e após alguns massacres, tomou o poder da Indo-nésia. Suharto foi reeleito pelo povo por cinco vezes consecutivas, e nesse período anexou o Timor-Leste ao estado indonésio.
Ricklefs (1993) e Zahorka (2007) destacam que Suharto esteve sob pressão de uma crise financeira que assolou a Indonésia no final da década de 1990. Esse acontecimento o obrigou a renunciar em 1997, fato que fez reascender o desejo de libertação dos timorenses. Ainda em 1997, o vice-presidente Bacharuddin Jusuf Ha-bibie foi empossado em seu lugar e permaneceu no cargo até 1999, quando concor-reu a reeleição e perdeu para a filha de Sukarno, Megawati Sukarnoputri.
[4 Sukarno (Surabaia, 6 de junho de 1901 — Jacarta, 21 de junho de 1970) foi presidente da Indonésia de 1945 a 1967. Como muitos javaneses, Sukarno não tinha sobrenome.]
Megawati não foi empossada nessa ocasião, pois seu partido a substituiu por Abdurrahman Wahid. Nessa época, as fraquezas internas da Indonésia deram impulso à guerrilha em Timor-Leste, e ao mesmo tempo, Megawati assumiu a presidência da Indonésia. A pequena ilha timorense passa a influenciar no destino de seu dominador, a Indonésia. Trazendo a história indonésia em uma vertente educacional, percebe-se co-mo historicamente os indonésios conseguiram abolir idiomas alóctones do país, fato que se repetiu com a língua portuguesa em Timor-Leste.
Para Forganes (2001), quando a Indonésia se tornou independente da Ho-landa, aboliu totalmente o idioma holandês do país. A língua de comunicação com o mundo passou a ser o inglês, ensinado nas escolas. Como língua nacional, embora as lideranças políticas fossem todas da ilha de Java, adotou-se o malaio, falado em boa parte do território indonésio com o nome de bahasa indonésio.
Suharto impôs o idioma como princípio de unificação do país e para a criação de uma identidade nacional. A mesma imposição de unificação nacional através da língua malaio se aplicou ao Timor-Leste, onde após a invasão em 1975, o ditador Suharto decidiu banir todos os professores que davam aulas em português das salas de aulas timorenses, sendo substituídos por professores que ensinavam em bahasa indonésio, formando essa e as gerações seguintes nesse novo idioma. O choque inicial de ter um professor dando aulas em outra língua se transformou em uma arma de lavagem cerebral, e um golpe fatal contra a língua do antigo dominador.
Relatos dos professores timorenses que viveram nesta época e que participaram de cursos de formação de professores da Cooperação Brasileira em Educação nos últimos anos informam que muitos desses profissionais foram perseguidos, e a maioria fugiu para as montanhas. São relatadas histórias desse período como prisões de professores em vários distritos que posteriormente eram levados para a ilha de Ataúro, relatos regados a fome, ódio, dor e violência.
Durante o domínio indonésio, muitos professores timorenses eram “premia-dos” pelos militares indonésios com falsas bolsas de estudos em Jacarta, capital da Indonésia. Entretanto, encontravam apenas outra Jacarta, esta, em território timorense, assustadoramente conhecida como Jacarta II. Os professores timorenses relatam que muitos dos seus colegas eram levados para Jacarta II e do alto de um penhasco eram lançados um a um. Quem sobrevivia, desaparecia com medo, e muitos fugiam para a Austrália e para Portugal. Esses acontecimentos faziam crescer o ódio e o desejo timorense de libertação.
Forganes (2001) relembra que com a invasão indonésia e com a proibição do português, a Igreja Católica adotou o tétum como língua litúrgica, e teve de traduzir o missal e partes da Bíblia. Relembra também que por oposição à dominação cruel dos indonésios, o tétum incorporou muitas palavras e estruturas portuguesas, com isso o português sobrevive em tempos de ocupação indonésia. Entretanto, apesar de incorporar palavras portuguesas, na atualidade, os ti-morenses que não falam a língua portuguesa, não conseguem diferenciar quais se-riam essas palavras que estão no tétum, mesmo nas mais faladas como “obrigado” e “boas tardes”; com isso, o português tem termos e expressões faladas, mas não percebidas como pertencentes à língua portuguesa.
Ao final de 1999 a realidade educacional de Timor-Leste mostrava que a língua indonésia, e as metodologias usadas pelo governo indonésio para unificar a nação através da língua havia surtido efeito. Os timorenses agora falavam, escreviam e liam em bahasa indonésio. A herança de Suharto persiste até na atualidade, onde os canais de televisão mais assistidos são da Indonésia, principalmente os que exibem telenovelas, inclusive as produções brasileiras, dubladas.
Os conflitos entre Timor-Leste e Indonésia se intensificam no final da década de 1990 e uma luz começa a brilhar no final de uma grande jornada. Graças ao trabalho diplomático dos “exilados” surge a proposta de realizar um plebiscito para o povo timorense decidir se permaneceria ou não como parte do Estado indonésio; em breve os timorenses iriam decidir seu futuro.
A luz que brilha em meio à escuridão é uma luz de fogo que queima o sonho macabro de Suharto de unificação. Forganes (2001) esteve presente no momento da libertação do domínio indonésio como repórter, e relata acontecimentos daquele final de setembro e começo de outubro de 1999:
Dili cheira a queimado, morte e destruição. A visão é alucinante. Quarteirões inteiros de casas brancas incendiadas, devoradas por enormes labaredas negras, saqueadas, destruídas. (...) Até onde a vista alcança, tudo é desolação. (...) As ruas estão repletas de lixo, destroços, o cheiro é insuportável. Só as igrejas escaparam aos in-cêndios e, mesmo assim, nem todas (p. 27).
O Timor-Leste fecha um novo ciclo, o do domínio indonésio, o ano é 1999. Uma nação começa a surgir. Hoje, passada mais de uma década do fim do domínio indonésio e da reimplantação do português como segunda língua oficial do país, o que se percebe é que um dos impasses na formação da identidade timorense é a reação negativa dos jovens que foram educados em indonésio à restauração da língua portuguesa. A frase da moda é “o português é muito difícil”, frase repetida e pro-clamada de leste a oeste da ilha do crocodilo.
Todo o sangue derramado pelos indonésios não os fez desejar banir o bahasa indonésio; a identidade unificada indonésia sonhada por Suharto vive com a mídia que invade as residências timorenses com a televisão. A explicação para isso pode estar relacionada também ao fato de a maioria dos timorenses possuírem fami-liares no lado oposto da ilha, familiares que decidiram continuar sendo indonésios no final dos conflitos.
Terceiro período: uma nova nação do mundo
O surgimento de uma nova nação, formada por diversas etnias, que falavam e falam entre 17 e 37 línguas diferentes é uma realidade. Entretanto, como Albuquerque (2010) relembra, durante a ocupação indonésia tentou-se tratar o povo timorense como um só, reduzindo a nação, no plano linguístico, a duas línguas – tétum e malaio. Agora, como nação livre, a língua malaia foi substituída oficialmente pela língua portuguesa, tida como um símbolo de resistência, mas não de uma língua falada.
Surge uma nova nação, um amanhecer com um idioma perdido em meio à escuridão que assolou um país durante 24 anos. Um país em busca de uma identidade própria sob uma intervenção dita humanitária que é regada a interesses dos mais variados que fizeram países como o Brasil aportar em terras tão distantes com um programa de cooperação educacional que introduz ideais tão surrealistas quanto se pode supor, ao se conseguir unir professores de diferentes formações e diferentes concepções culturais de um Brasil alheio a Timor-Leste, professores de comportamentos etnocêntricos por sua própria natureza.
Timor-Leste, agora é assim, sobrevive entre a escuridão e o amanhecer. Atualidade: educação e sociedade A educação e os campos que corroboram com o desenvolvimento do ensino perpassam os ideais dos educadores, pois, existem questões que vão de encontro à reforma educacional. Essas questões são chamadas de “crises”, ou seja, são os entraves da educação globalizada. Um fantasma que assusta os educadores timorenses.
Timor-Leste vive um período de validação do conhecimento em função de pessoas e instituições dos mais diversos países, que entendem que conhecem a sociedade timorense, e com isso usam esse conhecimento para matar a identidade através da ideia de que Timor-Leste, a exemplo de todas as sociedades do mundo, evoluirá para o ideal de sociedade vigente na Europa ou em seus países de origem, segundo diretrizes de etnocentrismos vigentes, construindo com isso uma nova identidade para o povo timorense.
As mudanças são forçadas pela comunidade internacional, senão vejamos alguns exemplos da criação da “crise da educação” a partir de contextos históricos de Timor-Leste e do mundo moderno. Stavenhagen (1999), membro da Comissão Internacional da UNESCO sobre Educação para o Século XXI, exatamente no ano em que Timor-Leste tem sua guerra pela independência da Indonésia, em 1999, relata que a educação é muito mais do que livros, que o ato de educar exige comprometimentos que se fundamentam em pilares. Entre esses pilares que Stavenhagen destaca está o aprender dos seres humanos a viver juntos neste novo mundo inter-relacionados, com as suas migrações em massa e os conflitos étnicos, bem como, aprender a conhecer o desenvolvimento de competência dos alunos em interpretar e explicar os fatos, do pensamento racional, que não deve ser encarado como uma simples finalidade de adquirir o conhecimento, mas também se deve almejar a sabedoria. Mais de dez anos após Stavenhagen proferir este discurso, as dádivas dos pilares educacionais parecem ainda padecer de patologias em muitos países em desenvolvimento.
Stavenhagen (1999) falava sobre o mundo em que vivemos e da necessidade de aprender a fazer, de adquirir competência para enfrentar as mudanças tecnológicas e se fazer útil nos mercados de trabalho, e aprender a ser, de um desenvolvimento pleno como um indivíduo livre e como um membro responsável de uma sociedade maior. Um discurso que sem dúvida vai ao encontro do repensar da educação na última década, tendo em vista que as crises educacionais se tornaram cada vez mais visíveis, indicando as enfermidades que se aproximam nos processos de ensino e aprendizagem no mundo inteiro.
Um repensar da educação em um país pós-guerra, como Timor-Leste, onde a crise apresenta características peculiares, pois engloba fatores que por muitas vezes se tornam alheios aos próprios timorenses, que ao fugir de uma destruição cultural cruel por uma ação de colonização pela Indonésia, foram levados a cair sobre uma nova forma de aculturamento, a cooperação internacional. Esse tipo de cooperação, com seus preceitos e seu modo de pensar, que expõe o homem timorense a uma vitrine com um rótulo de alguém que precisa ser salvo de um massacre que o mundo não consegue ver, ou não se interessa em ver, pois não entende o ser social timorense.
Nesse contexto surge uma nova nação chamada de Timor-Leste. Para o gênesis de Timor-Leste acontecer muitos conflitos cobriram o país de sangue e glória, como já se citou anteriormente. Entretanto, entender o novo Timor-Leste perpassa entender as causas dos conflitos, que interesses teriam tantos países em ajudar uma nação tão pequena perdida no sudoeste asiático. Os conflitos tinham um plano de fundo: os interesses econômicos e políticos dos Estados Uni-dos, da Indonésia e principalmente, da Austrália.
A Austrália e seu comportamento dúbio, que de aliado do inimigo indonésio nos anos de 1970 se transforma em um defensor de Timor-Leste. Interessante ressaltar as palavras de Falur Rate Laek, comandante da Falintil, o exército de libertação de Timor-Leste, ao falar sobre os conflitos pela independência no final do século XX para entender a formação da identidade cultural do timorense:
Os indonésios tinham armas dos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Austrália, os campeões da defesa dos direitos humanos no mundo. Nós nos orgulhamos porque conseguimos resistir. Tudo o que nós recebemos foi apoio diplomático. O Timor está situado numa área geopolítica em que todos os países apoiavam a Indonésia, não havia como introduzir nada aqui. É um problema de interesse eco-nômico e de hipocrisia mundial (citado por FORGANES, 2001).
Pelo menos 200 mil timorenses morreram no genocídio praticado pelo exército indonésio apoiado pelos americanos e australianos. Percebe-se que nem mes-mo o massacre timorense comoveu os chamados campeões dos direitos humanos. Os interesses econômicos se sobressaíram aos interesses sociais, o que fez com que Estados Unidos e Austrália se unissem à ditadura militar indonésia e apoiassem a invasão a Timor-Leste.
A Austrália foi o primeiro país a legitimar a invasão indonésia na década de 1970, e o fez pelo temor americano de ter uma “Cuba” do lado da Austrália, em alusão a comparar Timor-Leste à nação de Fidel Castro, principalmente com a Revolução dos Cravos em Portugal que introduziu naquele país um gover-no socialdemocrata e o avanço comunista na Indochina, caracterizado pelos gover-nos de Vietnã, Camboja e Laos. Em plena guerra fria, ter um novo país comunista assustava os australianos e os americanos.
A identidade timorense naquele momento se baseava nos ideais de justiça dos revolucionários timorenses, e isso não era politicamente correto naquele contexto. Senão, comparemos os discursos proferidos pelos aliados nas décadas seguintes à invasão. No discurso histórico de Bob Hawke, Primeiro-Ministro da Austrália em 1990, referindo-se à invasão do Kwait: “É importante para a Austrália que o mundo compreenda que os países grandes não podem invadir seus vizinhos peque-nos impunemente” (SANTANA, 1997, p.47 apud LAMARCA, 2003).
E também nas palavras de um funcionário graduado do Ministério das Relações Exteriores da Austrália, em meados da década de 1970:
Não vejo porque tanto barulho! O fato real é que só existem 700 mil timorenses; nós estamos preocupados mesmo é com nosso relacionamento com 130 milhões de indonésios (SANTANA, 1997, p.47 apud LAMARCA, 2003).
Sousa (2001) ao tratar do processo de descolonização do território timorense por Portugal destaca que este foi brutalmente interrompido em 1975 por uma ocupação prolongada e de violenta colonização da Indonésia, que foi definitivamente rejeitada e dissolvida pelo referendo de agosto de 1999.
As pressões internacionais aumentaram com a violência e o massacre do povo timorense e com isso, depois de forte condenação da opinião pública mundial, do comportamento do exército indonésio, Estados Unidos e Austrália trocam de lado e passam a defender os timorenses com ameaças de repressões econômicas contra a Indonésia.
Esta foi seguida pela violência brutal, que se encerra com a intervenção das Nações Unidas, cujo comando das forças de paz era liderado pelos australianos. A ONU entrou em Timor-Leste para administrar o processo de transição para a independência, dez anos se passaram e ela continua lá, mesmo com o país já es-tando com seu segundo presidente eleito pelo povo, José Ramos Horta.
Indubitavelmente, Timor Leste tornou-se uma questão importante no discurso político de muitos países, incluindo o Brasil. Sobre Timor-Leste neste novo cenário mundial, Sousa (2001) diz que o país é “objeto de preocupação para a política internacional e solidariedade”. Um interesse econômico que atende pelo nome de petróleo.
Senão vejamos: na visita do então presidente do Brasil a Timor-Leste em 2008, Luís Inácio Lula da Silva, entre os discursos diplomáticos e de apresentação dos professores brasileiros, o presidente Lula proferiu a seguinte frase: “Hoje estão vindo os professores brasileiros, amanhã quem sabe vem a Petrobrás”. O discurso foi seguido de um sorriso constrangedor tanto da comitiva brasileira quanto das autoridades timorenses que estavam naquela manhã de julho de 2008 na escola que o Senai mantém em Dili.
Constrangedor porque o petróleo timorense está nas mãos dos australianos. Interessante também perceber no cotidiano do povo Maubere, que é outra denominação para o timorense, que os processos de introdução de uma nova cultura não precisam ser de dominação ou de invasões sanguinolentas.
Observando as cooperações internacionais em Timor-Leste, percebe-se que o comportamento social do homem ocidental tem contribuído como um fator importante e corrosivo da identidade timorense, pois se encontram nas ruas de Dili, como bem diz Sousa (2001): “até comportamentos sociais praticamente desconhecidos para as populações locais”.
Nos dez anos seguintes à independência da Indonésia, o que se percebe é que os comportamentos sociais dos internacionais se tornaram “crises de identidade” inconscientes na mudança da visão de mundo do povo timorense. Como exemplos estão as mulheres estrangeiras usando biquínis nas praias de Dili do mesmo lado de mulheres timorenses que se banham completamente vestidas, mesmo as que usam calças jeans, isso tudo sob o olhar atento de uma nova geração de timorenses. Geração que há mais de dez anos quando ocorreu a independência eram crianças e hoje, muitos já são pais de família.
Sousa (2001), neste contexto, afirma que o imediatismo do discurso político ou a retórica da solidariedade preencheu o espaço do que não foi estudado e interpretado, o que não é ainda conhecido.
Estas “crises de identidade” se fortalecem com uma febre de juventude baseada na aceitação e incorporação do novo em detrimento do velho. Retomando o discurso cooperativista, relembrando Mauss (1974) em suas considerações sobre dádivas, é interessante perceber que as sociedades progrediram na medida em que elas mesmas aprenderam a estabilizar suas relações, a dar, a receber e a retribuir.
Hoje, percebe-se que a nação timorense superou os conflitos com seus dominadores principais, a Indonésia e Portugal, as relações sociais e diplomáticas se estabilizaram, e com isso, as pessoas aprenderam a satisfazer interesses mutuamente e, enfim, a defendê-los sem terem que recorrer às armas.
Entretanto, como o mesmo Mauss (1974) ressalta ao falar de nosso mundo civilizado, as classes e as nações, bem como os indivíduos, devem aprender a opor-se sem massacrar-se e a dar-se sem sacrificar-se uns aos outros, ou seja, o remédio da crise que envenena a estabilização da nação timorense é um fator primordial na construção, na destruição ou na reconstrução da identidade timorense. Esta é uma dádiva a ser conquistada pelos timorenses diante de tantos discursos de globalização.
Nesse processo de profilaxia entra em cena o Banco Mundial, e seu discurso de que, para garantir a estabilidade econômica dos países em desenvolvimento, as questões sociais tornaram-se essenciais. Nos primórdios de 1999, ano da libertação de Timor-Leste do domínio indonésio, o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn declarou, segundo relata Altman (2002), que a justiça social é uma questão tão importante quanto o crescimento econômico, e que em curto prazo você pode manter a desigualdade. Mas em longo prazo não dá para ter uma sociedade estável. E conclui que é necessário criar oportunidades para que as pessoas pobres se desenvolvam, investindo em educação e em reforma agrária.
O discurso internacional de justiça social aliado ao crescimento econômico sem gerar desigualdades, soa muitas vezes, como um efeito placebo em diversos segmentos de uma nação, principalmente na reforma educacional e mesmo da re-forma agrária de qualquer nação em desenvolvimento. Senão vejamos, analisando a história recente de Timor-Leste.
Segundo Simião (2006) com o fim da Untaet, que foi a administração transitória de Timor-Leste, em que as Nações Unidas tomavam para si a montagem dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de Timor-Leste, sob o comando do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Melo, e a restauração oficial da independência da República Democrática de Timor-Leste, em 20 de maio de 2002, os holofotes da mídia internacional tornaram-se bem mais modestos no país. Sem holofotes, a nova nação aliada, a Austrália, conseguiu seu triunfo, o controle das reservas de petróleo em Timor-Leste.
O mesmo Simião (2006) relata como é impressionante que um universo de valores internacionais circule tão forte pelo país, em especial pelas ruas de sua capital, Dili. Conceitos, valores, modos de pensar e estar no mundo, próprio de ideologias globalizadas, fazem-se presentes com a mesma força e vigor que formas muito particulares de se organizar a vida cotidiana, que contribuem para as questões que interferem na construção da identidade do povo timorense.
O discurso proferido não se revela no cotidiano das pessoas na atualidade, principalmente porque os timorenses ainda necessitam de arroz subsidiado pelo governo e de canco, um vegetal plantado nos esgotos de Dili, para alimentar as patologias de suas mentes e a homeostasia de seus corpos. Como diria Hegel (apud Bambirra, 2010), a Filosofia e o real aparecem como o processo que produz e per-corre os seus momentos; e o movimento total constitui o positivo e sua verdade. Movimento esse que também encerra em si o negativo, que mereceria o nome de falso, se fosse possível tratar o falso como algo que se tivesse de abstrair.
A educação em Timor-Leste sofre de uma patologia, uma febre, caracteriza-da por refletir na sala de aula os sintomas que afligem a sociedade timorense, que é resultado de crises, onde interesses políticos corroem a identidade nacional. A realidade da sala de aula é uma e a da sociedade é outra, são campos antagônicos que propiciam a necrose da epistemologia docente.
A crise na sociedade refletida na educação timorense
As questões políticas de Timor-Leste ressaltam historicamente a máxima de que o inimigo de ontem é o aliado de amanhã, senão vejamos o que relata Lamarca (2003) sobre a ação australiana em terras Maubere: que desde a invasão indonésia em 1975, até a intervenção internacional em 1999 a política australiana para o Timor-Leste se modificou, de uma posição conivente com a invasão e o domínio indonésio durante mais de vinte anos, para uma postura de engajamento na discussão sobre o status futuro do território, que culmina com a participação do país na intervenção internacional, assumindo o papel de liderança da força multinacional.
Os interesses econômicos se justificam pelo controle australiano do petróleo timorense, que divide opiniões, principalmente quando analisados em como se apre-sentava o país quando este assinou o contrato de exploração petrolífera em Timor-Leste. Por conseguinte, os anos que se sucederam à independência foram marca-dos pela forte presença australiana em terras Maubere. Essa seria a primeira crise que iniciou o envenenamento da identidade nacional.
Nas décadas de 1970 e 1980 a quantidade de timorenses que adquiriam cidadania australiana residindo em Darwin, cidade australiana mais próxima da ilha timorense, foi significativa. Foi nesta mesma época que os professores timorenses foram expulsos de suas escolas e substituídos por professores indonésios, como já citado anteriormente como um fato sufocador da língua portuguesa em benefício do bahasa indonésio. Entretanto, mesmo após a saída dos indonésios, as escolas ainda refletiam o colonizador.
Os livros estavam defasados e tinham abordagens tecnicistas, e os professores com ideais de uma educação libertadora e confusa, enfim, um sintoma de uma enfermidade que se aproximava. Entretanto, após a libertação, uma parcela dos timorenses que fugiram para a Austrália e Portugal voltou, e agora representavam um novo perfil de homem timorense, com novos valores sociais e morais e com diplomas de curso superior, bem diferente do povo que sofreu aculturamento indonésio imposto nos anos de dominação, que por vinte e quatro anos fez do povo timorense, ainda que cristão, seguidor de costumes islâmicos, típicos da maior nação muçulmana do mundo, a Indonésia.
O choque entre os dois mundos que se sucedeu fez nascer uma geração que nos anos de 2008 a 2010 se observa como envergonhada pelas suas tradições e seus costumes, entre eles o chamado barlaque. O barlaque, mencionado anteriormente, é um contrato de casamento tradicional entre as famílias, em que o noivo deve pagar um dote à família da noiva. O dote é acordado em prestações pagas com animais como cavalos e búfalos, e dinheiro vivo, conforme as posses da família do noivo, que ao ser aceito pela família da noiva, passará a ter plenos poderes sobre o destino da esposa. No caso do noivo não conseguir pagar sua divida acaba sucumbindo aos interesses da família da noiva, sendo muitas vezes tratado como um escravo. Essa tradição começou a ser banida de muitos distritos de Timor-Leste, mas muitas famílias ainda a cultivam, principalmente no distrito de Los Palos, tido como o lugar com as noivas mais belas e caras.
Atualmente os jovens, principalmente nos grandes centros, preferem crer que “mais vale o amor”, (opinião nem sempre compartilhada pelas famílias de ambos) ainda que não manifestem nenhuma forma de afeto em público, pois, em Dili não se vê casais namorando em público o que seria um reflexo da cultura muçulmana.
A crise se manifesta nos questionamentos da sociedade sobre suas tradições e sobre as modernidades dos timorenses vindos da Austrália e de Portugal e também dos cooperativistas, em que jovens timorenses almejam uma libertação, que estes tratam como “sexo livre”, que eles entendem haver entre os internacionais.
Entretanto, esse “sexo livre” localmente se traduz na indústria de prostituição chinesa, tailandesa e indonésia. A mesma crise também se reflete na proliferação do protestantismo na ilha, com grande número de missionários oriundos da Amazônia brasileira, cuja aparência física se confunde com timorenses e indonésios, que com suas atuações começam a minar os alicerces e os valores da tradicional igreja católica timorense.
A construção de uma nova identidade nacional busca incluir a tradição e o aculturamento cooperativista. Neste contexto surge a língua portuguesa, que passa a ser tratada como um idioma elitista, falada por membros da alta sociedade timorense em bares e restaurantes frequentados por internacionais, onde é comum encontrar essa parcela do novo timorense degustando alimentos da culinária internacional, e não mais os pratos tradicionais a base de arroz e verduras.
O perfil do novo cidadão timorense com sua nova identidade que mescla o tradicional e os costumes dos internacionais que ali habitam, forma uma sociedade de contrastes culturais. De um povo que ainda guarda luto por um ente querido durante um ano usando roupas pretas, e faz festas de desluto para tirar essas roupas, e ainda assim se faz parecer um estrangeiro, como se renegasse sua identidade em face de ter padecido por uma febre de juventude que cria uma nova identidade, uma identidade híbrida. Esse reflexo de sociedade não se espelha na maioria das escolas timorenses.
Afinal, o cidadão de identidade híbrida agora frequenta a escola internacional ou a escola portuguesa, não vai à escola pública. Entretanto, a escola pública, onde está a grande massa dos jovens timorenses, ainda traz metodologias que incluem o uso da “palmatória”. Curiosamente, a violência escolar é aceita por grande parte da sociedade, principalmente os mais pobres, pois entendem que esta se baseia em discursos como “é preciso ter disciplina” ou, quando contestados por estrangeiros, argumentam que “as crianças do ocidente são diferentes das crianças do oriente”.
A escola timorense ainda reflete um padrão comportamental típico de países de governos militares, e nem poderia ser diferente, afinal, Timor-Leste esteve sob domínio indonésio durante os anos de chumbo do país, da sanguinolenta ditadura Suharto, e anteriormente esteve sob domínio do governo português da ditadura Salazar, como detalhado no início do capítulo. São as crises do passado demonstrando seus sintomas no presente, que caminham por feridas não curadas no país, marcas diferidas que resistem na educação, que já se apresenta em estado febril.
Carneiro (2010), um professor brasileiro membro da cooperação em educação, ao relatar sua impressão de Timor-Leste ao chegar a Dili em 2008, descreve a diversidade de línguas utilizadas no país, não só nas placas e sinalizações, mas também nos diversos contextos de interação. O mesmo autor relata que observou pessoas falando em tétum nas ruas, nas feiras e nas casas; professores portugueses e brasileiros ensinando e interagindo em língua portuguesa nas universidades e em cursos de formação de professores; trabalhadores internacionais dos mais diversos países conversando em inglês nos restaurantes, nas agências internacionais e nas sedes de ONGs; comerciantes de diferentes nacionalidades, mas principalmente indonésios e chineses, utilizando o indonésio e o inglês, dentre os quais ainda se veem alguns que utilizam o hakka ou o yue, línguas vindas do sul da China que es-tão presentes no país desde tempos remotos.
Essa realidade das ruas de Dili relatada por Carneiro (2010) se amplia nos distritos, onde cada localidade possui uma língua materna, que sai da sociedade e vai parar na sala de aula e com isso surge mais uma crise de identidade que padece a educação timorense. Este outro sintoma do estado febril da educação timorense, os conflitos de línguas durante a ministração das aulas nas escolas timorenses ocorre, pois as escolas timorenses recebem livros doados pelo governo português, que ainda no século XXI retratam a realidade de Portugal, como se revivessem o aculturamento dos pais; e em menor escala recebem as sebentas, que são os materiais didáticos ela-borados em curto prazo pelos professores da cooperação brasileira e em parte também pela cooperação portuguesa; e possuem ainda em suas bibliotecas os livros didáticos dos tempos de domínio indonésio, caracterizados por abordagens tecnicistas.
Surge então um grave dilema educacional: como usar livros escritos na se-gunda língua oficial do país, o português, se os alunos e os professores não têm proficiência neste idioma? E como não usar os livros em língua bahasa indonésio idealizados em abordagens tecnicistas desatualizados, livros estes marcados pela ditadura militar de Suharto, em um país que agora respira a liberdade de expressão?
A solução de muitos professores timorenses tem sido escrever no quadro um resumo da aula em língua portuguesa, e como não há domínio da arte da argumentação em português, nem pelo professor e nem pelo aluno, faz-se uma tradução livre do conteúdo, que se segue a uma atividade sobre o tema para então finalizar a aula; ou se produz material em língua materna, mas com as deficiências desses dialetos de termos técnicos característicos de todas as disciplinas. Com isso a educação timorense adoece cada vez mais.
São os verdadeiros alienígenas na sala de aula, como enfatiza Santomé (2008), ao tratar das culturas negadas e silenciadas em um currículo, ao dizer que uma das finalidades fundamentais de toda intervenção curricular é a de preparar os alunos para serem cidadãos ativos e críticos, membros solidários e democráticos de uma sociedade solidária e democrática.
Entretanto, o que se percebe na educação timorense é que a intervenção que está ocorrendo, que parte de Portugal e em menor escala do Brasil, só se preocupa com o conhecimento universal, negligenciando a ecologia dos saberes e o multiculturalismo timorense.
Santomé (2008) conclui dizendo que é preciso chegar a níveis maiores de reflexão em torno dos pressupostos, das normas e dos procedimentos que subjazem às diferentes práticas e conteúdos escolares. Os currículos oficiais de Timor-Leste foram desenvolvidos por universidades portuguesas, e os manuais didáticos produzidos no país são elaborados por brasileiros, ou seja, como bem diz Grignon (2008), a escola conduz espontaneamente ao monoculturalismo. A construção dos saberes não se realiza nunca em estado puro, de forma independente daquilo ao qual estão associados esses saberes, tanto na forma quanto no contexto em que são transmitidos.
Semprini (1999), ao tratar sobre o multiculturalismo enfatizado nas raízes históricas e na situação atual, afirma que a diferença é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e encontra-se inserida no processo histórico. A questão escolar, a prática e os campos antagônicos, as crises tendem a mostrar o caminho a se seguir ou se evitar. Tudo isso faz parte de um processo de reforma educacional que ocorre todos os dias nas escolas do mundo inteiro, independente da vontade dos pensadores em educação, pois termina por refletir uma sociedade em constante mutação.
Diante de tudo isso, percebe-se que as questões que interferem no processo evolutivo da educação estão intimamente ligadas às relações sociais entre o estado e os cidadãos. Como bem diz Santos (2008), estas relações são marcadas pela dominação, que estabelece a desigualdade entre cidadãos e Estado, bem como entre grupos e interesses políticos organizados.
Esse é o perfil da educação de Timor-Leste nos últimos anos. E estas são as verdadeiras crises que afetam a educação timorense, pois, como o mesmo Santos (2008) diz, que é através do conjunto das relações sociais que se criam identidades coletivas de vizinhança, de região, de raça, etnia, religião que circulam entre os indivíduos a territórios físicos ou simbólicos e a temporalidades partilhadas passadas, presentes ou futuras. A construção de uma nação capitalista no novo milênio e a matriz de seu engrandecimento parte de uma dialética capaz de influenciar gerações e que, nas horas difíceis, demonstram sua maior força.
A sociedade e seu aculturamento são tidos como as crises que levam ao engrandecimento de seu povo e a cicatrizes do seu sistema educacional. A crise parece não ter cura.
TEIXEIRA, E.R. Cooperação Internacional em Educação: o Programa Brasileiro de Qualificação Docente e Ensino de Língua Portuguesa em Timor-Leste. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Amazonas: Manaus, 2013.